A Era moderna, a era das descobertas, das grandes navegações e dos piratas.
Talvez o mais famoso dele seja Francis Drake, o corsário da rainha. E essa é a nossa lenda de hoje.
O ano era 1589, mas o que isso significa? 1589? O mundo sentia uma onda de mudanças que viria de forma violenta. Ondas essas que seriam compreendidas tanto no sentido figurado quanto literal. Enquanto as águas do atlântico se movimentavam no rumo das naus e demais embarcações europeias, o velho mundo se aperfeiçoava no brilho das moedas de ouro.
Reis de todas as partes viam uma oportunidade: aumentar suas riquezas. Talvez a avareza do mercado tenha surgido neste século, quiça pouco antes, mas enquanto os sangue corria pelas veias abertas do novo mundo, europeus drenavam as fontes dos povos tradicionais e poluíamo-nos.
Mas a convivência entre os exploradores não era pacifica, não. Havia um temor no mar, que surgia em meio a névoa e brumas marítimas… com sua bandeira preta ou mesmo sem nenhuma bandeira, saqueadores comumente romantizados como piratas surgiam assassinando e roubando as embarcações desavisadas ou corajosos demais. Os embates cheiravam a sangue, pólvora e morte.
Porém havia um entre eles, que além de ser cruel, era talvez um dos mais estratégico: Francis Drake. Drake não era um pirata qualquer com barba desgrenhadas, cheiro de rum e charutos baratos. Drake tinha um título. Ele era um Sir para a Inglaterra. Um cavaleiro oficial. E diferente das bandeiras pretas dos seus similares, este Sir seguia uma bandeira, a bandeira de uma das rainhas mais importantes do mundo: a rainha Elizabeth primeira.
Fiel a uma bandeira, o cavaleiro, capitão e vice almirante inglês, Sir Frances Drake acumulava riquezas caribenhas, porém tinha um desejo obsessivo pelas riquezas espanholas.
Eis que surge mais um personagem nessa história: Filipe II da Espanha no qual a luta, obsessão, ódio e saque de Drake era notória. Para este espanhol havia apenas o ímpeto de ignorar tantos títulos? Sir? Capitão? Cavaleiro? Para mim, este é apenas um pirata! E como tal, o enfrentamento entre a Espanha e Inglaterra se deu de forma indireta, no mar, com toneladas e toneladas de tiros de canhões.
Por isso, ao pensar no ano de 1589, pense no cheiro da maresia, da pólvora, do sangue e das moedas de ouro. Ao sentir esse cheiro entenderá em que anos passará a nossa história.
Entre saques e mais saques das embarcações espanholas, Drake somava vitorias atrás de vitórias. Porém nossa história narrará uma derrota e esta derrota alterou o rumo de uma das rotas cristãs mais importantes da história do mundo: o caminho de Santiago…
No quarto dia do quinto mês deste ano, uma frota perdida de Francis Drake emergiu no noroeste da Espanha. Um total de 180 navios de guerra transportando 27.667 soldados e marinheiros ingleses desembarcaram na cidade de A Coruña, no noroeste da Espanha. Com tantos soldados assim, nosso personagem queria muito mais do que saque, queria a dominação. O ataque era uma terrível investida contra a nação.
Liderando a frota estava este nosso terrível explorador inglês e capitão do mar. Nessa mesma época, a capital da região da Galiza contava apenas com cerca de 1.500 soldados para defendê-la, além das muralhas medievais na parte alta da cidade. A cidade precisaria ser estratégica, caso contrário, seria o seu fim.
Além do mais, a única artilharia existente estava no castelo de San Antón em dois galeões que haviam retornado no ano anterior da tentativa fracassada do rei Filipe II da Espanha de invadir a Grã-Bretanha.
O ataque parecia ser um fim para os assustados e ameaçados galegos.
Há 80 mil passos de a Coruna, um bispado de uma enorme catedral tradicional estava aflita. Segundo as notícias, o terrível pirata tinha um objetivo mais cruel: roubar as ossadas do apóstolo Thiago Maior. Um dos quatro selecionados primeiramente pelo próprio Cristo. Anos de tradição jacobeia estavam a ponto de acabarem pelas mãos do pirata.
A duvida ecoava pela Nave da imensa catedral em gritos de dor, duvida e desespero. Foi então que ali mesmo, sob o altar da nave central, o bispado não pensou duas vezes, cavou um buraco e enterou os restos mortais do apóstolo e de dois discípulos seus. Ali ficaria enterrado por séculos. Esquecidos.
Enquanto isso, o povo de La coruna iniciou seu contra-ataque antes mesmo das embarcações de Drake atracarem completamente. Essa investida galega tinha temor, mas garra daqueles que não queriam perder suas terras, suas tradições. As muralhas resistiam ao ataque o suficiente para quebrar a estratégia de Drake que foi tomado por um susto. Foi um contra-ataque cirurgico e eficiente. Afinal de contas, seriam os Espanhóis os colonizadores modernos da América. Seriam os mesmos que abriram as veias americanas na presença de Pizarro e Cortez: não haveria compaixão dos espanhóis, ainda mais frente um usurpador de suas riquezas.
Foi a ira, o ódio e sobretudo o ímpeto ibérico que fez o contra-ataque ser preciso.
E então, os olhos dos bardos locais testemunharam um feito e mantiveram seus empregos por mais alguns séculos: A pequena cidade montou uma resistência heróica. Seus poucos soldados e navios contra-atacaram e afundaram oito dos navios britânicos enquanto tentavam chegar à costa. Como em um evento apocalíptico, desses navios afundados cinco navios ingleses haviam estado em fuga mas foram arrastados por ventos. Tentaram buscar refúgio num estuário próximo mas não resistiram e afundaram juntamente com toda a tripulação.
Esta foi uma derrota para Drake. Derrota do qual os ingleses não colocam nos autos de Drake, mas que afundou não somente os seus barcos mas também sua estratégia. Se a justiça divina foi tão cruel quanto Santiago cortando a cabeça dos mouros no século IX, dessa vez o céu inteiro esteve contra os ingleses afundando amargamente a frota e orgulho de Drake.
Assim, as embarcações inglesas de Drake permaneceram enterradas e esquecidas no fundo do mar, assim como as ossadas de Santiago permaneceram sob pedras. Gerações cantaram essa história e mais uma tradição se chegava a Galicia, mais uma lenda e mito do caminho de Santiago: o dia em que Santiago de Compostela foi quase atacada por piratas, mas que foi protegida pelo seu povo galego.
Esses presentes ficaram enterrados e com um laço simbólico, foram entregues como presente de natal para historiadores, arqueólogos e teólogos contemporâneos.
Seis séculos separam esse feito. A Espanha mudou mas ainda permaneceu uma mistura de tradições e culturas como diferentes ingredientes em uma suculenta paella. Estudiosos locais e internacionais estudam os elementos e tradições do caminho de Santiago e da Galícia.
A Igreja e seus seguidores tão fiéis e tão estagnados parecem não aprovar estudos similares. Aparenta que acreditam que orar seja a única solução para entender os mistérios do universo. Mas a academia de ciências humanas não dá trela para tamanha perseguição troglodita, teocentrica e terraplanista.
E assim, estudam ossadas, pedaços de madeira e cada centímetro da história contada pelas tradições galegas, incluindo este ataque pirata.
Ofelia Rey aparece tardiamente em nossa história e tem uma coleção de escritos e estudos sobre isso. Tal qual nossos personagens, Ofelia também uma personagem real em nossa história.
Acredito eu que em um dia quente no verão espanhol, a catedrática acessou seu laptop em seu escritório e viu o resultado de uma matéria na ABC História espanhola. Nela, Ofélia apresentaria publicamente sua teoria para o caso. Teoria esta que fazem os ultra conservadores do caminho babarem de raiva ao misturarem ciência com religião.
E como em uma máquina do tempo, a reportagem transporta seus leitores para o ano de 1589. Os frades que ali residiam se reunem e tem a ideia de utilizar Drake como desculpa, uma desculpa muito rude tomada em uma grande mesa em uma grande comedoria fria. Nessa reunião imaginada mas muito próximo da realidade, descobre-se que Felipe II tinha um plano: criar uma lipsanoeca no mosteiro El Escorial, com a idéia de reunir ali as relíquias mais destacadas do mundo. O apóstolo seria um dos candidatos.
Porém ao mesmo tempo, um pedido de inspecção ocular das relíquias do apóstolo havia sido encomendada por um dos cinco bispos da coroa de Castela com a suspeita de falsidade na documentação e relicário do santo.
Há então quem diga que os gritos metafóricos pela nave de Compostela não tenha sido de temor ao pirata Drake mas sim do medo da tradição de séculos vir por água abaixo. Se alguém descobrisse qualquer evidência de fraude, tudo viria por água abaixo.
Então o melhor foi esconder as ossadas com risco de que Drake pudesse roubá-las.
Por isso, para se lembrar de 1589, além do cheiro da pólvora e das embarcações úmidas, talvez vale a pena lembrar da temperatura fria das paredes da catedral de compostela e dos calafrios que os bispos sentiram ali antes de tomarem essa decisão.
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